Crise financeira é ‘gatilho’ para sofrimento emocional
Isolamento, incertezas e problemas com dinheiro estão provocando a "quarta onda" da pandemia da Covid-19, relacionada às doenças mentais
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segunda-feira, 28 de setembro de 2020
Isolamento, incertezas e problemas com dinheiro estão provocando a "quarta onda" da pandemia da Covid-19, relacionada às doenças mentais
Micaela Orikasa - Grupo Folha
De um lado da linha, Aparecido Beltrame, voluntário no CVV (Centro de Valorização da Vida) em Londrina escuta diariamente o sofrimento de pessoas que ligam para o serviço em busca de ajuda, de apoio emocional. Beltrame se dedica à escuta há mais de seis anos, mas nos últimos seis meses, isto é, desde o início da pandemia do novo coronavírus, além de um aumento no número de chamadas, ele vem percebendo uma maior demanda relacionada à crise financeira.
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“Acredito que das chamadas que tenho recebido, os temas relacionados ao desemprego e falência, por exemplo, estão na ordem de 25%”, conta. Por dia, o CVV recebe uma média de 11.500 ligações em todo o Brasil. Os atendimentos são gratuitos e sigilosos. “Muitas pessoas já estavam desconstruídas e essa pandemia oficializou isso. Quando a pessoa liga porque perdeu o emprego, está com dificuldade de sair e procurar outro ocupação ou porque não tem vagas no mercado de trabalho, a pessoa entra em desespero”, diz o voluntário.
AUMENTO DE ATENDIMENTOS
Uma pesquisa com médicos psiquiatras de 23 estados e do Distrito Federal, feita pela ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), aponta que 47,9% dos entrevistados perceberam aumento em seus atendimentos após o início da pandemia. O levantamento também buscou identificar os atendimentos a pacientes novos, que apresentaram recaída após o tratamento já finalizado ou o agravamento de quadros psiquiátricos em pacientes que ainda estão em tratamento. Dos respondentes, 67,8% afirmaram ter recebido desde o início da pandemia, pessoas que nunca haviam apresentado sintomas psiquiátricos antes.
Os participantes destacaram o aumento da sintomatologia ansiosa e de quadros de depressão, ansiedade e transtorno de pânico, bem como alterações significativas no sono. Diante dessa realidade, especialistas vêm alertando sobre a chamada “quarta onda” da pandemia, que é a onda das doenças mentais.
“Muitas pessoas já estavam desconstruídas e essa pandemia oficializou isso"
O presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva, afirma que o estresse é uma reação normal que ocorre quando o organismo precisa se ajustar à uma mudança. “Quando saímos de nossa homeostase, ou seja, o nosso modo usual de funcionamento, cognitivo, comportamental e emocional, temos que usar nossos mais nobres recursos para adaptação. É nesse sentido que muitas pessoas, ao não conseguirem fazer esse ajuste, adoecem e necessitam de atendimento especializado. É de se supor que, num momento de grande mudança e necessidade de adaptação, sintomas de ansiedade, depressão e relacionados ao trauma aumentem e precisem de uma abordagem imediata”, destacou em uma publicação oficial.
SETEMBRO AMARELO
Dados da cartilha "Informando para prevenir", publicada pela ABP e pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), apontam que 96,8% dos casos de suicídio registrados estão associados com histórico de doenças mentais, que podem ser tratadas. Essa abordagem foi um dos destaques da campanha Setembro Amarelo, dedicada à prevenção do suicídio. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), cerca de 800 mil pessoas morrem por suicídio no mundo, todos os anos.
Um estudo publicado em 2013 pelo British Medical Journal e publicado no ano passado pela BBC News Brasil, estima que quase 4.900 suicídios a mais do que o esperado ocorreram em 2009, meses depois da crise econômica global de 2008, reunindo as estatísticas de 54 países, a maioria europeus. Homens jovens desempregados e homens com idade entre 45 e 64 anos foram os grupos mais suscetíveis.
“Ficar sem dinheiro é, para muitas pessoas, como se elas perdessem o poder, a segurança, a tranquilidade"
O texto trouxe a análise da psiquiatra Alexandrina Meleiro, da Abeps (Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio), ao observar que problemas financeiros impactam um público específico, que são "os desempregados e homens acima dos 40 anos que, ao perder poder de compra e redução na renda perdem status e se veem obrigados a viver com menos."
PSICOLOGIA ECONÔMICA
Uma pesquisa com mais de 10 mil trabalhadores no Reino Unido mostra que as pessoas com dificuldades financeiras são 14,6 vezes mais propensos a não dormir bem à noite; 12,4 vezes mais probabilidade de não terminar tarefas diárias; 4,6 vezes mais chances de entrar em depressão e 4,1 vezes mais propensos a ataques de pânico.
Os resultados revelam que o bem-estar financeiro está relacionado intimamente com a saúde mental e essa é um das linhas de estudo da psicóloga econômica Vera Rita de Mello Ferreira, membro do Comitê de Pesquisa da Rede internacional de Educação Financeira da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e da Iarep (Internacional Association for Research for Economic Psychology).
Ela diz que a pandemia tem sido para muitos “uma espécie de educador financeiro, só que pela dor. Durante anos, os educadores financeiros falam que é preciso ter uma reserva de dinheiro, mas enquanto a emergência não acontece, dessa forma planetária como está acontecendo, as pessoas acham que é bobagem”.
Ela avalia que cada pessoa está atravessando a pandemia de um jeito. “Temos desde pessoas que não estão conseguindo colocar comida na mesa e aí vem o desespero absoluto e a incerteza de não saber quando tudo isso vai passar, se vai passar e que tipo de economia está por vir. Ninguém está exagerando na reação, me parece uma reação bastante fundamentada na realidade. É para ficar preocupado. É natural ter medo, não vai ser uma mágica que vai trazer as coisas do jeito que eram”, completa.
"A pessoa precisa buscar um conteúdo que faça sentido para ela, como consultores financeiros, além de um apoio psicológico"
Indicadores da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Covid-19, mostram que pelo menos três milhões de pessoas ficaram sem trabalho devido à pandemia. “Ficar sem dinheiro é, para muitas pessoas, como se elas perdessem o poder, a segurança, a tranquilidade, mas também a autoestima e os homens podem perder ainda a potência sexual. Mas do que eu vejo, em geral, é que os problemas com dinheiro refletem problemas que as pessoas já têm. Não é que do nada, ao ficar sem dinheiro, as pessoas se desequilibram e ficam completamente atrapalhadas. Já tinha alguma porta aberta para isso”, afirma.
Ainda de acordo com a especialista, é importante pensar que assim como acontece com qualquer problema emocional, as pessoas com problemas com dinheiro também devem ir atrás de ajuda. “Hoje, na internet tem milhões de fontes. A pessoa precisa buscar um conteúdo que faça sentido para ela, como consultores financeiros, além de um apoio psicológico. Existem trabalhos voluntários nessas áreas. O que faz a gente se sentir mal é o sentimento de que a gente não vai dar conta e, às vezes, poder trocar ideia com outra pessoa, já redimensiona o problema e a pessoa pode perceber que é possível encontrar soluções com pequenas metas”, diz.