O desastre ambiental no Rio Grande do Sul deverá colocar a pauta ambiental no centro dos debates das eleições deste ano, ao lado de temas como saúde e educação, mas os resultados não deverão gerar grandes mudanças a curto prazo. O compromisso de grande parte da classe política com atividades que degradam o meio ambiente e a falta de percepção de parte considerável do eleitorado sobre a relação entre as políticas públicas e os efeitos das mudanças climáticas são dois fatores que podem inviabilizar as mudanças e favorecer um cenário de mais catástrofes, avaliam especialistas ouvidos pela FOLHA.

Pesquisa do instituto Quaest divulgada na semana passada indica que 99% da população brasileira acredita que as enchentes no Sul do país têm ligação com as mudanças climáticas. A maior parte dos entrevistados, 64%, avalia que a crise climática tem ligação total com o excesso de chuva e as inundações, e 30% acham que a ligação é "em parte" causada da pelas mudanças globais de temperatura. Só 1% dos ouvidos disseram acreditar que não há nenhuma relação. Apesar disso, dificilmente essa percepção deverá se traduzir em votos – seja pela falta de opções entre os candidatos, seja pela divulgação de notícias distorcidas ou mesmo por mentiras propagadas em relação ao assunto.

“Quando essas tragédias acontecem, as pessoas de uma hora para outra começam a ter essa percepção de que elas decorrem das mudanças climáticas. Mas o que vemos entre candidatos a prefeito e a vereador é que essa pauta está muito longe da nossa realidade brasileira”, diz Miguel Etinger, doutor em Direito das Cidades e professor de Direito Ambiental e Urbanístico, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na UEL (Universidade Estadual de Londrina).

MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO

O simples discurso, avalia Etinger, não representa um compromisso com a questões ambientais. “Existem aqueles que negam as pesquisas e outro grupo, que reconhece que há uma crise climática, mas que em geral não transforma isso em ação concreta, em um plano de ação, em uma abertura de discussão com a sociedade e as universidades”, afirma. “Não tenho visto nada de discussões de enfrentamento das mudanças climáticas, nem em Londrina. Deixar mais áreas permeáveis significa construir menos prédios e menos condomínios, e isso vai contra alguns interesses.”

Para Clóvis Borges, diretor executivo da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), há um debate distorcido que coloca ações de preservação como se elas fossem contrárias ao desenvolvimento. “Ter políticas para que isso aconteça a partir de ações efetivas, e não da contínua degradação, é um ponto de inflexão que a gente ainda enfrenta nas eleições. As pessoas não têm percepção de que precisamos de atores públicos que cuidem dessa agenda seriamente.”

As pressões de certos setores, diz Borges, impedem um debate aprofundado a respeito da preservação. “As pressões convencionais obliteram, no Executivo e no Legislativo, a possibilidade de se falar de inovação. Estamos em uma situação de conivência, por ignorância ou complacência, de grande parte da sociedade, que não vê no voto a capacidade de ajudar nesse tipo de direção, embora a vida das pessoas esteja sendo afetada. As pessoas tendem votar no discurso demagógico, de que certas práticas alimentam o mundo e geram empregos. É um discurso difícil de ser confrontado.”

DISCURSO E PRÁTICA

No mesmo sentido, o publicitário e especialista em marketing político Mauricio Ramos concorda que a percepção em relação à catástrofe colocará a pauta ambiental na campanha, mas diz que será preciso analisar bem os discursos. “Mesmo pessoas que não têm compromisso histórico com o meio ambiente, e que aliás tem até um histórico de desenvolver políticas depreciativas ou negacionistas, adotarão posturas diferentes, mas que com certeza não passarão de discurso de campanha”, diz Ramos, que já trabalhou com alguns dos principais nomes da política de Curitiba e do Paraná.

Ele ressalta que caberá ao eleitor avaliar se há compromisso real por parte do candidato ou se tudo não passará de um discurso. “Cabe ao eleitor pesquisar qual o compromisso que esses políticos têm historicamente com o meio ambiente, se isso está inserido na vida e na pauta deles desde sempre, ou se foi só agora, já que pode dar votos. Porque a chance de não passar de conversa é muito grande”, afirma o publicitário. “Há o compromisso de parte da classe política com atividades que colocam o meio ambiente em risco, seja pelo desmatamento, pelo uso de agrotóxicos ou outras formas de produção poluentes.”

DEBATE OBSTRUÍDO

Doutora em Ciência Política, Karolina Roeder estima que os temas ambientais estarão mais presentes nas capitais e em áreas atingidas. “À exceção do Rio Grande do Sul e das capitais, não acredito que esse tema aparecerá nos debates das demais cidades, sobretudo nas pequenas, que são mais de 4 mil no país. “Apesar dos alertas, o bolsonarismo e os ruralistas, forças políticas muito presentes em grande parte do interior do país, se opõem a esse debate por questões ideológicas e econômicas.”

Diante desse processo, o desastre no Sul do país não deverá levar a grandes mudanças a curto e médio prazos. “Problemas reais, como os eventos climáticos extremos, não necessariamente resultarão em debates e produção de políticas públicas sobre o tema", avalia ela. Para Roeder, parte da classe política, sobretudo a extrema direita, vem obstruindo e confundindo o debate por questões ideológicas. “A recente disseminação de fake news sobre os desastres mostram como o discurso populista utiliza a confusão para obstruir o debate e não tem a preocupação em resolver problemas reais.”

"Eventos crônicos são ainda mais sérios”, diz diretor da SPVS

A inundação do Rio Grande do Sul é um evento agudo resultante das mudanças climáticas e da falta de políticas de proteção do meio ambiente, mas os efeitos crônicos, que passam despercebidos por grande parte da sociedade, são ainda mais graves, alerta Clóvis Borges, diretor da SPVS (Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental), entidade que trabalha há 24 anos com preservação e projetos de integração entre recursos financeiros e técnicos para buscar soluções na área.

“Os impactos ambientais são agudos e crônicos. Os agudos são esses que estamos vendo com mais frequência. Os eventos crônicos são ainda mais sérios, são como uma doença silenciosa, quando a pessoa vai ver já é tarde”, afirma Borges. “Além de imperceptíveis, esses eventos acontecem todos os dias, em escala pequena: a supressão de vegetação em volta das cidades, na áreas rurais, e o enfraquecimento da legislação ambiental, por exemplo. Isso, além de imperceptível, conta a conivência da sociedade.”

Para Borges, essa conivência é representada pela pressão exercida por certos setores sobre os poderes Legislativo e Executivo, sem que haja uma reação da sociedade. “A conivência vem de um movimento materializado como lobby: o lobby da especulação imobiliária, que envolve as Câmaras Municipais e o Executivo dos municípios, uma pressão continuada no sentido deixar o barco correr, porque existe um interesse econômico. Na área rural, o cenário é mais ou menos o mesmo, há um processo de degradação de áreas, com a instalação de usinas hidrelétricas e novas aberturas de frentes para agricultura. O poder público, por inação, ou apoio, é completamente conivente e corresponsável por isso.”

Para o professor da UEL Miguel Etinger, o poder público, além de contribuir para reduzir as causas do aquecimento global, deve produzir planos eficazes para mitigar os danos. “Países e cidades precisam estar preparados não só para diminuir as causas, mas principalmente se adaptar às consequências. Várias partes do mundo já passaram por esses desastres. O anúncio de que isso acontece no Brasil a natureza já deu há muito tempo. E parece que os governos, principalmente os municipais, não tiveram a necessária atenção para se preocupar com essa questão.”