Dona Yolanda, 89 anos, escreve o portal UOL, teria passado cinco décadas de sua vida em situação de trabalho análogo à escravidão em Santos (SP), na medida em que, durante este tempo (50 anos) ela não teve contato com a família, bem assim sofreu abusos físicos e psicológicos, não recebeu salário ou dias de folga. Houve uma neta sua que, inclusive, acreditou-a morta.

Ao conhecer da situação o ministério público do Trabalho pediu à Justiça o reconhecimento de Dona Yolanda enquanto vítima de trabalho análogo ao de escravo. Em consequência, que a família que lhe explorou (enquanto escrava) arque com R$1 milhão por danos morais coletivos.

Tenho visto tanta maledicência de 2013 para cá que, às vezes, até me esqueço de amarilla, o árbitro ladrão que roubou meu Corinthians contra o Boca, em pleno Pacaembu. Todavia, a exploração de Dona Yolanda me agride tanto que escrever não é uma opção e sim um remédio e amarilla já não é senão um títere no jogo da vida.

Fato é: falhamos vergonhosamente com Dona Yolanda em algum momento, na medida em que vizinhos, parentes (seus e dos escravocratas), porteiros, médicos, padeiros, quitandeiros, feirantes, grandes irmãos do tal boni, a lua cheia, o sol poente, sei lá; Alguém ou algum seguimento que, por cinquenta anos, não se lhe dirigiu um olhar curioso a justificar uma maior indagação de sua história, não podem (pela ausência de empatia) justificar o fato de sua exploração criminosa.

A falência de empatia não é senão a ausência de humanidade e seu grito concebe o erro redivivo no abandono das mazelas cidadãs, ao tempo em que faz lembrar o corpo mumificado da mulher morta em seu apartamento em Madrid, que somente foi encontrada após sete anos de sua morte.

Entre a múmia madridista e a Senhora, Dona Yolanda, há mais desilusão que simetria, ainda que o desencanto revele nossa selvageria de verão. Estamos vergonhosamente selvagens. Estamos mesquinhamente covardes.

Afeto? Coisa de gente delicada! Empatia? Apenas outro nome a não se considerar no batismo de nossas filhas!

Demais da exploração laboral de sua pessoa, me inquieta a desconstrução histórica de dona Yolanda: iria ela, acaso, à missa? Teriam lhe concedido o domingo para alimentar os macacos no zoológico? Teria visto John Lennon ser morto ou ouvido na radiola (que ela é dessa época) Adoniran se queixar do Arnesto?

E o mais importante: soube ela que a magia existiu entre nós apenas e tão somente porque o manto (sagrado) foi envergado por Cláudio, Luizinho, Baltazar, Carbone e Mário?

Ora direis ouvir Yolanda e gostaria de lhe dar voz, senão para lhe resignificar (não sou carpinteiro do mundo), para lhe compor em vestes da significância, naquilo que os despossuídos de fortuna devam espiar um pouco mais de perto a própria pororoca, no encontro do mar de desilusão com o rio dos desalmados.

A não pertença de alma da família santista que explorou Dona Yolanda se lhe impôs não apenas um cadafalso de ilusão; ainda e também lhe valeu o medo de olhar, tocar e falar. Dona Yolanda teve dificuldade em pegar à mão da repórter branca que descortinou a desventura nossa no trato que revelou a última escrava de Santos...

Não há mais volta. Dona Yolanda é a prova viva que podemos ser ainda piores e mais cruéis do que possamos imaginar. Imaginação aqui, aliás, é o que impede meu asco se sobrepor a torneira do tempo; enquanto esta segue pingando tratos de desilusão, minha história está menor por conta da ruptura que levou cinquenta anos da vida de uma mulher negra que a família branca acreditou possuir...

Há um filme antigo (1982) do comediante estadunidense Richard Pryor; O Brinquedo. Na película (dirigida por Richard Donner), um pai biliardário (branco) contrata o negro engraçado (Pryor) para ser o ‘brinquedo’ de seu filho mimado.

O nonsese se equilibra ao limite da relação então desenvolvida entre o lingrinhas e seu ‘brinquedo’, desaguando no lugar comum da solidão de ambos se encontrando no preenchimento das ausências de costume.

Penso que Dona Yolanda não assistiu ao Brinquedo – aliás, viu ela algum filme? Qual? Ouvia música? Quais?

Nossa falta de empatia fez de Dona Yolanda o brinquedo da família branca por cinquenta anos, sem que ninguém tenha sequer indagado da precisão de dar corda ou trocar a bateria da infeliz dama negra que serviu de sol a sol.

Espero que Yolanda vença a reticencia imposta pelos anos de pelourinho e, enfim, consiga cumprimentar pessoas brancas, suposto que o seu gesto além de enaltecer nossos white people problems, por certo ressuscitarão memórias em favor de tudo que deixamos de ser quando não nos colocamos no lugar do outro...

Enquanto última escrava conhecida, Dona Yolanda bem que poderia substituir, enquanto construção artística, uma qualquer estátua dos escravocratas que os movimentos periféricos estão a derrubar e incendiar pelo mundo. Senão por justiça poética, por vergonha nossa.

Perdão Dona Yolanda, nós seguimos não sabendo o que fazemos.

Saudade pai, você ensinou olhar as pessoas com carinho e respeito...

João dos Santos Gomes Filho, advogado

Os artigos, cartas e comentários publicados não refletem, necessariamente, a opinião da Folha de Londrina, que os reproduz em exercício da sua atividade jornalística e diante da liberdade de expressão e comunicação que lhes são inerentes.

COMO PARTICIPAR| Os artigos devem conter dados do autor e ter no máximo 3.800 caracteres e no mínimo 1.500 caracteres. As cartas devem ter no máximo 700 caracteres e vir acompanhadas de nome completo, RG, endereço, cidade, telefone e profissão ou ocupação.| As opiniões poderão ser resumidas pelo jornal. | ENVIE PARA opiniao@folhadelondrina.com.br