No sábado, dia 19, às 14h15, o Brasil atingiu a marca fatídica e infame de meio milhão de mortos pela Covid -19. O gigante pela própria natureza, dilacerado por quinhentos mil pedaços de si mesmo, empreende uma interminável agonia, num exangue infindável, se arrastando sobre um vale de lágrimas.

Pobre Brasil! Cabisbaixo e desnudado pela truculência de uma omissão negacionista, implora o socorro que até agora lhe foi negado. Vidas arruinadas para sempre pela ausência dos entes que se foram precocemente, e outras marcadas com o selo das sequelas terríveis, algumas definitivas, deixadas pelo coronavírus.

Quinhentos mil brasileiros enterrados precocemente! O que falta para chamarmos a esta mortandade de genocídio? Que argumentos decentes, plausíveis de razoabilidade, alguns ainda terão, para justificar esta calamidade, que de fatalidade nada tem? Buscar-se-ão no dicionário outros termos, que pela sua “leveza” atenuem ou simplesmente mintam sobre esta tragédia nacional? Creio que não será possível.

A pandemia que se abateu sobre o planeta não fará, proporcionalmente, a mesma devastação mortífera da Gripe Espanhola! Por motivos óbvios! Em 1918 tinha-se acabado de descobrir a existência de vírus. Mas os médicos não sabiam que um vírus causava essas doenças e tampouco existiam medicamentos e vacinas antivirais para promover a recuperação dos infectados.

Há cem anos, essa pandemia levou entre 40 a 50 milhões de pessoas, cerca de 2,5% do total de habitantes. A humanidade fez o que pode, inclusive lançando mão do isolamento social, mas sofreu as consequências de não estar preparada para essa fatalidade. A vacina surgiu anos mais tarde. Porém, a Covid-19 emergiu num momento completamente diferente do anterior.

O século XX representou para o sapiens uma revolução cientifica e tecnológica como nunca tinha conhecido em seus 100 mil anos de existência. Em 31 de dezembro de 2019, a OMS foi alertada sobre casos de pneumonia ocorrendo na China; em 07 de janeiro de 2020, o vírus causador da doença foi identificado como uma nova cepa de coronavírus! Em pouco mais de seis meses, várias vacinas na fase III de desenvolvimento já apresentavam eficácia acima de 80% na prevenção de infeções sintomáticas da doença.

É neste ponto que o genocídio brasileiro começa. Endossando teorias conspiratórias e negacionistas, ironizando a letalidade do vírus e investindo pesado em tratamentos comprovadamente inadequados, o governo federal, debochando do isolamento social e das máscaras, foi empurrando o país para as valas abertas dos cemitérios. Não sem antes matar cidadãos por falta de oxigênio!

Numa demonstrada incapacidade ministerial, associada a um desdém pela doença e a uma fé religiosa na cloroquina e hidroxicloroquina, os milhares de caixões fechados foram se enfileirando tetricamente, arrancando os corações dos familiares que não podiam velar seus entes. Mas não foi só isso. A asfixia da economia, pela ausência de uma política nacional, inteligente e transparente sobre lockdown, e ajudas consistentes e sistemáticas a pessoas e empresas, fez com que o Brasil aumentasse para 14.8 milhões o número de desempregados e entrasse de novo no mapa da fome, com 20 milhões de cidadãos.

Hoje não restam dúvidas, embora uma parcela seja tentada a negar até ao fim. A adoção da imunização do rebanho foi posta em prática, na contramão de toda a ciência disponível. No Brasil, são inúmeros os excelentes infectologistas que a isso se opuseram desde o primeiro momento. O dito do presidente em 1999, que seria “necessário que morressem uns trinta mil”, converteu-se num número terrivelmente mais alto! Uma matança escandalosa e criminosa que denota uma total banalização da vida. Se para ele, “bandido bom é bandido morto”, creio que neste meio milhão de homens e mulheres, encontraríamos poucos bandidos, ou quem sabe nenhum! Foi tiro errado!

Os 500.000 que foram embora sem vacina ou por falta de UTI nos impelem a falar, a escrever, a protestar, a denunciar. É a melhor homenagem que lhe faremos! O Brasil não podia ter chegado até aqui. O aumento dos cemitérios por esse Brasil afora é o grito eloquente que se eleva contra a loucura, o desmazelo, o deboche e o fascismo que nos assolam.

Não podemos esperar “outros quinhentos”!

Padre Manuel Joaquim R. dos Santos, Arquidiocese de Londrina

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