São Paulo - A coalizão de esquerda Nova Frente Popular (NFP) surpreendeu no segundo turno das eleições legislativas francesas, tornando-se o maior bloco parlamentar em uma França partida em três. É o que indicam as projeções de boca de urna, às 20h de Paris (15h de Brasília), após um pleito marcado pela ascensão da ultradireita, pelo forte comparecimento às urnas (67%, o maior desde 1981) e pelo temor de quebra-quebra.

Segundo o instituto Ipsos, a NFP tornou-se o maior bloco, com cerca de 200 assentos, seguido pela coalizão Juntos, do presidente Emmanuel Macron, com até 165 cadeiras, e pela antes favorita Reunião Nacional (RN), de ultradireita, com até 135 deputados. Antes, esses blocos tinham, respectivamente, 150, 250 e 89 deputados.

Para outro instituto, o Ifop, os números eram de cerca de 182 para a NFP, por volta de 160 para os macronistas e 142 para a RN e aliados. Os resultados finais da eleição, realizada em sistema distrital e majoritário em dois turnos, devem ser conhecidos por volta de meia-noite em Paris (19h de Brasília).

Na França, ao contrário do que ocorre no Brasil, o segundo turno pode ter mais de dois candidatos. O segundo turno da eleição, disputada em sistema distrital majoritário, foi marcada por mais de 200 desistências de candidatos de esquerda em fa

O resultado deste domingo, que surpreende também pelo número maior do que o previsto para a bancada do centro governista, indica que a frente republicana teve sucesso em barrar a ultradireita. Os números permitem também prever que a esquerda indicará o novo primeiro-ministro, sucessor de Gabriel Attal, 35, um pupilo do presidente. Há ainda, no entanto, indecisão sobre qual será o nome sugerido.

Jean-Luc Mélenchon, 72, líder do partido França Insubmissa, maior integrante da NFP, foi o primeiro a se pronunciar. Sem chegar a pleitear explicitamente o cargo de primeiro-ministro, pediu a renúncia de Attal e anunciou que não quer coalizão com os macronistas. "Saúdo aqueles que se mobilizaram, porta a porta, para convencer e arrancar um resultado que diziam impossível", disse um dos líderes da NFP, Jean-Luc Mélenchon, do partido da esquerda radical França Insubmissa. "Nosso povo descartou a solução do pior. É um alívio para a maioria das pessoas em nosso país."

Ele também defendeu a revogação da reforma das aposentadorias imposta em 2023 por Macron, passando a idade mínima, de modo geral, de 62 para 64 anos.

"Recusamos entrar em negociação com o partido do presidente para fazer alianças, sobretudo depois de ter combatido sem descanso há sete anos sua política abuso social e de inação ecológica", afirmou ainda o líder.

Mélenchon é uma figura controversa mesmo na esquerda. É acusado de extremismo e até de antissemitismo, devido à sua posição pró-Palestina em relação ao conflito em Gaza. Ele nega ser antissemita. O presidente da RN, Jordan Bardella, afirmou após a divulgação das pesquisas boca de urna que Macron e Attal "jogaram a França nos braços da extrema-esquerda". "Privaram a França de qualquer resposta a suas dificuldades cotidianas. Os arranjos eleitorais entre um presidente isolado e uma extrema-esquerda incendiária não levarão o país a lugar algum. A pergunta é: o que eles vão fazer? Mas um vento de esperança surgiu e ele nunca mais vai parar", disse Bardella.

"A NFP, a aliança eleitoral heterogênea, não dispõe de maioria que permita governar, o que quer que diga o senhor Mélenchon", disse o ex-primeiro-ministro Édouard Philippe, do partido Horizontes, de centro-direita, expondo a incerteza a respeito da composição do governo.

A possível chegada da ultradireita ao poder, pela primeira vez desde o regime colaboracionista com o nazismo, na Segunda Guerra Mundial, elevou a tensão política na França nas últimas semanas. Houve episódios ocasionais de violência. A porta-voz do governo, Prisca Thevenot, e auxiliares foram agredidos esta semana quando colavam cartazes.

O medo levou muitos comerciantes a protegerem suas vitrines com tapumes e barreiras, inclusive nos Champs-Elysées, a avenida mais famosa de Paris. Viralizou um vídeo mostrando a instalação de proteção na fachada da loja da marca de luxo Louis Vuitton.

O Ministério da Justiça anunciou um contingente excepcional de 30 mil policiais nas ruas francesas, devido ao temor de vandalismo após o anúncio dos primeiros resultados.

O pleito foi convocado no início de junho por Macron, após o mau resultado do governo nas eleições para o Parlamento Europeu. A decisão de dissolver a Assembleia Nacional causou perplexidade, uma vez que ele possuía uma maioria relativa de 250 deputados até o final de seu mandato, em 2027.

O primeiro fim de semana das férias escolares de verão na França teve uma diferença importante em relação aos anos anteriores. Os franceses pegaram a estrada, mas 3,3 milhões dentre eles deixaram para trás votos por procuração para o segundo turno. Na França, votar é facultativo, mas é permitido autorizar outra pessoa a depositar sua cédula na urna.

O número recorde de votos por procuração - quatro vezes maior que na eleição anterior, em 2022 - era um indicador do grande interesse despertado por este pleito fora de época.

APELO

Nos últimos dias, centenas de intelectuais, artistas, jornalistas e esportistas se pronunciaram publicamente em favor da frente republicana. A Folha de S.Paulo ouviu algumas dessas personalidades esta semana na place de la République, tradicional ponto de manifestações políticas na capital francesa.

O jornalista Edwy Plenel, ex-diretor de redação do jornal Le Monde e fundador do site de jornalismo investigativo Médiapart, qualificou de "irresponsável" a decisão do presidente Macron de dissolver a Assembleia Nacional e convocar a eleição, no início de junho.

"A oposição [de esquerda] não teve tempo de se organizar de verdade. [Macron] é como um juiz de futebol que diz ao time que ganhou uma partida: segue o jogo, a bola está no seu pé, pode fazer outro gol. E é bem possível que a extrema-direita faça esse gol", comparou Plenel.

Para ele, o risco é que chegue ao poder um grupo político "apoiado pelo imperialismo russo, um regime neofascista que apoia madame Le Pen". Ele se refere à líder da RN, Marine Le Pen, 55, que declarava publicamente sua admiração pelo líder russo, Vladimir Putin, até a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.

Plenel advertiu para o risco de, além de Rússia e China, dois outros membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas - França e EUA - passarem a ter governos antidemocráticos, em caso de vitória do partido de Le Pen na eleição legislativa francesa e do republicano Donald Trump na eleição presidencial americana, em novembro.

Julia Cagé, uma das economistas mais respeitadas da França, disse à reportagem que a vitória da RN seria "catastrófica sob todos os pontos de vista".

"Veja o que aconteceu no Brasil com Bolsonaro", afirmou Cagé, autora de um livro sobre a história eleitoral francesa, escrito com o marido, Thomas Piketty, outro economista de renome. "Será um desastre para a universidade, para a liberdade de pensamento, para a independência da mídia, para os direitos das mulheres."

Alguns jogadores da seleção francesa de futebol masculino, atualmente disputando a Eurocopa na Alemanha, conclamaram os eleitores a votar contra a ultradireita. Entre eles, o maior ídolo da França, Kylian Mbappé, e o atacante Marcus Thuram.

O pai de Marcus é Lilian Thuram, campeão mundial com a França em 1998 e conhecido pelo engajamento político. À Folha, Lilian disse se orgulhar do posicionamento do filho. "Na minha época, Jean-Marie Le Pen [pai de Marine e fundador da RN] já dizia que na seleção francesa havia jogadores demais com a pele negra. Não há nada de novo. A ideia da RN é dizer que, se você não é branco, você não é totalmente francês."