O Ano de 2020 muito 'Além da imaginação'
Primeiro semestre termina deixando a sensação de ano que sequer começou, mas já demora a acabar
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domingo, 05 de julho de 2020
Primeiro semestre termina deixando a sensação de ano que sequer começou, mas já demora a acabar
Marcos Martins/ Especial para a Folha
Exatos 186 dias atrás, vivíamos as últimas horas de 2019. O ano, marcado por tragédias e perdas surpreendentes e dolorosas, terminava com a esperança — quase uma súplica — de um 2020 melhor. Curiosamente, no mesmo 31 de dezembro, a China informava a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre “casos de pneumonia de causa desconhecida”, detectados na cidade de Wuhan. Era o prenúncio de que algo ruim estava por vir.
Se por aqui o ano “só começa depois do Carnaval”, foi exatamente na Quarta-feira de Cinzas que o Brasil teve o primeiro caso do novo coronavírus confirmado, em São Paulo.
A partir daí, o caos que já revirava diversas partes do mundo entrou também no nosso cotidiano. Medidas de higiene, isolamento, distanciamento e outras orientações atropelaram planos, metas, rotinas. Algo jamais imaginado pelo ser humano se instalou em nossas vidas, sem data para ir embora.
Além das mortes, a crise econômica castiga, fechando empresas, cortando empregos, trazendo desespero. Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em maio, 19 milhões de pessoas estavam afastadas do trabalho e, entre estas, 9,7 milhões ficaram sem remuneração. O Fundo Monetário Internacional (FMI) avalia que a queda do PIB deve chegar a 9,1% neste ano.
É como viver em um episódio da clássica série “The Twilight Zone - Além da Imaginação”, sem direito a acordar de um pesadelo ou trocar de canal. Em vez de ficção científica, suspense, fantasia e terror, apenas a realidade triste e pesada. Em março, a OMS declarou pandemia mundial do novo coronavírus. Pontos turísticos de diversos países ficaram fechados. O Papa Francisco rezou uma missa sozinho, diante de uma praça de São Pedro completamente vazia. Os Jogos Olímpicos foram adiados pela primeira vez na história e as competições esportivas, suspensas por tempo indeterminado.
Embora o semestre surreal tenha girado praticamente em torno da covid-19 e seus desdobramentos, outros fatos também marcaram presença. Desde curiosidades até certo ponto fúteis, como o Príncipe Harry e a atriz Meghan Markle deixando de usar o título de “alteza real”, em janeiro, até a grave crise nos bastidores da política, com o ex-juiz Sérgio Moro atirando contra o governo ao deixar o ministério da Justiça, em abril, as alfinetadas entre Jair Bolsonaro e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, do Senado, Davi Alcolumbre, e do STF, Dias Toffoli, e as trocas no ministério da Saúde — Nelson Teich, substituto de Luiz Henrique Mandetta, ficou apenas 28 dias no cargo. Um pouco mais que Carlos Alberto Decotelli. Convidado a substituir Abraham Weintraub no ministério da Educação, teve o currículo devassado — e desconstruído. Pediu demissão antes mesmo de uma cerimônia de posse. As manifestações pedindo intervenção militar e o fechamento do Congresso também geraram reações negativas. A crítica ganhou espaço até em publicações internacionais.
Joaquin Phoenix, que brilhou na interpretação de “Coringa”, ganhou o Oscar de melhor ator, em uma premiação em que o drama sul-coreano “Parasita” fez história: recebeu quatro estatuetas e se tornou o primeiro longa-metragem em língua não inglesa a vencer como Melhor Filme. Bong Joon Ho, o diretor, também foi premiado e emocionou o mundo. Foi um dos últimos grandes eventos presenciais. Após isso, para evitar aglomerações, gravações de filmes, séries e outras produções foram suspensas. No Brasil, até novelas inéditas saíram do ar, dando espaço para reprises.
Os técnicos de futebol Oswaldo Alvarez, o Vadão, e Valdir Espinosa, nos deixaram. Além deles, outras personalidades também partiram neste semestre. Os jornalistas Gilberto Dimenstein e Sérgio Noronha, o jogador de basquete Kobe Bryant, o cineasta José Mojica Marins, o Zé do Caixão, a cineasta Suzana Amaral, o astro da sinuca Rui Chapéu, o artista plástico Daniel Azulay, as atrizes Adelaide Chiozzo, Daisy Lúcidi e Maria Alice Vergueiro, os cantores Moraes Moreira e Kenny Rogers, os escritores Rubem Fonseca e Sérgio Sant'Anna, o ator Flávio Migliaccio e o compositor Aldir Blanc — este último vítima do coronavírus. Em sua homenagem, a Lei 14.017/20, que libera R$ 3 bilhões para artistas e estabelecimentos culturais durante a pandemia, recebeu o nome do grande parceiro de João Bosco e coautor de “O Bêbado e a Equilibrista”.
Os protestos do movimento “Black Lives Matter” se espalharam mundo afora, após a morte do segurança George Floyd, nos Estados Unidos, pedindo um basta ao racismo. Até estátuas foram derrubadas.
Milhões de gafanhotos invadiram cidades e fazendas de parte da Argentina e Paraguai, formando nuvens assustadoras e destruindo plantações. Os insetos quase chegaram no Brasil mas, por enquanto, tomaram outro rumo.
E Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, finalmente apareceu, no apagar das luzes.
Quando o semestre parecia encerrado, ainda dava tempo de mais alguma coisa. Desafiando a ficção, a realidade nos trouxe um ciclone-bomba, algo que nem imaginávamos que existia. A passagem do fenômeno meteorológico, no último dia de junho, causou destruição e mortes na região Sul do país, com ventos de até 120 km/h.
“Tivemos um primeiro semestre arrastado, pesado, triste, que vem desafiando nossa maneira de lidar com problemas, mexendo com nosso emocional, testando limites, tirando nosso foco em alguns momentos. Um ano em que ainda não pudemos começar várias coisas que havíamos planejado, já está na metade, mas não vemos a hora de acabar. É complexo, surreal. Uma travessia que, pelo visto, ainda será longa e tensa. Apesar de tudo, acredito que vamos sair mais fortes. Não podemos perder a esperança”, avalia a antropóloga Maria Cristina Neves.
Manoel Carlos, autor de novelas de sucesso como “Por Amor” e “Páginas da Vida”, disse certa vez: “a ficção precisa fazer sentido para as pessoas, a realidade não”. Parecia apenas uma frase. O ano de 2020 tem nos mostrado que não. Preparados para mais um semestre?