Na última segunda-feira (5) , a letra de "Sampa" ecoou quando o Grupo Silvio Santos, num ato de vizinho tresloucado, emparedou os Arcos do Beco que integram o antológico Teatro Oficina na capital paulista, no bairro do Bixiga, aquele mesmo que merece mais teatro e menos capitalismo selvagem.

"A força da grana que ergue e destrói coisas belas" deu as caras no espaço amorosamente construído pelo grande dramaturgo, ator e ativista Zé Celso Martinez Corrêa, que faleceu em julho de 2023 num incêndio que consumiu sua vida, mas não sua força como expressão cultural do Brasil.

LEIA TAMBÉM:

Grupo Silvio Santos empareda Arcos do Beco do Teatro Oficina

Bastou Zé Celso "virar as costas" para que o projeto de construir torres de prédios no terreno contíguo ao teatro saísse de novo da gaveta do Grupo SS, dando novo contorno a uma briga jurídica que durou mais de 40 anos, enquanto Zé estava vivo.

A ideia de Zé Celso era a de transformar o terreno, ao lado de Oficina, num parque que não seria da sua companhia, mas da cidade de São Paulo. Quem já viveu na capital paulista sabe a falta que fazem os parques no calor do concreto na paisagem sem árvores. O terreno ao lado da Oficina tem um córrego, a uma profundidade de quatro metros, que o atravessa como a memória de uma cidade que foi província fértil e se tornou árida como a maioria das grandes cidades.

Zé Celso entendeu que um parque ao lado do Oficina, em vez do feio estacionamento que hoje ocupa o lugar, seria um presente não só para um espaço consagrado à arte, mas para a capital paulista. Mas todos sabem, desde a luta pelo Parque Augusta, que os empresários não estão interessados em áreas verdes, ainda que sejam pequenos respiros em meio à densidade do concreto. E Silvio Santos também nunca entendeu o que seria este ato de generosidade para com a cidade que o enriqueceu.

PATRIMÔNIO DO BRASIL

O Teatro Oficina é um patrimônio material e imaterial do Brasil. Projetado em 1992 pela arquiteta Lina Bo Bardi, a mesma que fez o Masp, é um espaço que surpreende por suas galerias de onde o público vê a cena passar, numa concepção de passarela em que o rito da arte está em movimento como numa rua, onde o transeunte é o teatro.

Mas na segunda-feira, os homens do Grupo Silvio emparedaram os Arcos que são uma saída de cena e, futuramente, se o ato de vandalismo se mantiver, isso irá comprometer a própria concepção dos espetáculos, a movimentação dos atores que circulam por ali, num espaço que nasceu para ser livre como o coração de Zé de Celso.

Com o emparedamento dos Arcos do Beco criaram-se feias vãos fechados e o teatro nacional sofreu um baque, um baque físico, um baque moral, no País onde a arte é uma eterna luta. Com o emparedamento dos Arcos do Oficina não sofre apenas o teatro, trata-se de um escárnio com a própria arquitetura. Na contramão da memória de Lina Bo Bardi, foi dado um tapa na cara da capital cultural do País. Isso requer reações e manisfestações.

ARQUITETURA E CONSTRUÇÃO

Sabemos que há muito os sonhos arquitetônicos que vimos nascer aqui mesmo em Londrina, nos anos 1950, nas obras de Vilanova Artigas, têm sido sufocados pela mera construção. E a situação do Oficina é um exemplo claro dessa falta de oxigênio no planejamento das cidades.

Em Londrina, obras de Artigas têm sua marca registrada nos volumes, nas curvas, nos arcos, nas rampas do Teatro Ouro Verde, coberto de pastilhas que tecem a memória dos edifícios modernos. Por onde a gente passa, quando vemos uma obra de Artigas na cidade sabemos que ali tem sua marca: seja no prédio hoje ocupado pela Secretária de Cultura, antiga Casa da Criança, seja no Museu de Arte de Londrina (MAL), que permanece fechado, embora seja para sempre um sinal de respeito à arquitetura e à vida urbana.

Hoje, em Londrina, não se vê mais o dedo de um Artigas nas novas construções, o ideal que permeou a arquitetura moderna pertence a um passado que empobreceu com a multiplicação de edifícios sem charme. Agora, a gente passa e pergunta: tem o dedo de quem aqui? É o dedo de ninguém nos prédios encaixotados ou mesmo embalados para a venda. Torres simétricas, todas praticamente iguais, em sua maioria, sem curvas, numa retidão que leva à monotonia e fere a paisagem. Mas há quem veja nisso a estrutura da contemporaneidade, sem arte, sem arquitetura.

O emparedamento do Teatro Oficina é um sinal dos tempos surdos, da encenação censurada, da beleza impactada pelo negócio. Os artistas do Brasil e o público do teatro torcem para que a situação seja revertida e a encenação não seja podada em seu rito. O Oficina é um patrimônio cultural da cidade de São Paulo e do Brasil.

O Teatro Oficina é um prédio tombado desde de 2010 nas três instâncias: municipal, estadual e federal. O Iphan diz que não foi consultado sobre o emparedamento realizado pelo Grupo Silvio Santos e está avaliando o caso. Até lá, um grupo caricato, como seu próprio dono, paira sobre São Paulo e a vida cultural do País como um espectro "da força da grana que destrói coisas belas."