As visões feministas do diretor iraniano Jafar Panahi sempre estiveram no centro de seu trabalho, mas seu filme mais recente, “Sem Ursos”, é uma peça ambiciosa e poderosa que o coloca no centro de duas narrativas, paralelas entre si, nas quais duas gerações de mulheres são forçadas a situações difíceis porque as tradições e as leis tornaram quase impossível para elas estarem com quem amam.

À distância, em uma cidade fronteiriça, Panahi (que interpreta a si mesmo) está dirigindo virtualmente um filme sobre dois amantes, Bakhtiar (Bakhtiar Panjei) e Zara (Mina Kavani), que estão tentando escapar do Irã para que possam ficar felizes juntos. O filme é uma espécie de documentário, e os personagens são baseados nos próprios atores e em sua fuga planejada. Em justaposição, Panahi se vê preso em meio a uma situação na pequena aldeia em que está hospedado, quando se espalha um boato sobre ele ter tirado a foto de um casal, Gozal (Darya Alei) e Solduz (Amir Davari). O boato começa a se agitar porque a mulher na foto foi prometida a outro homem ao nascer, cortando o cordão umbilical em seu nome.

Nessas duas situações, Panahi fica desamparado. Este é o mesmo país onde a jovem curda Mahsa Amini morreu em 2022, sob custódia da Policia Iraniana da Moralidade, que a prendeu por uso inadequado do “hijab”, o véu tradicional do islamismo. As mulheres são sufocadas pela opressão, e Panahi se vê forçado a se colocar no meio e ter o coração partido enquanto os dois cenários se desenrolam. Zara está chateada porque sente que o diretor está mentindo a favor de um final feliz para seu filme. Enquanto isso, na aldeia, os homens estão furiosos porque acreditam que Panahi está escondendo evidências de que Gozal está saindo com um homem a quem ela não pertence.

Esses homens forçam Panahi a ficar na frente de seu júri improvisado de homens da aldeia em que ele está hospedado; eles estão preocupados que ele esteja deliberadamente encobrindo evidências e zombando de suas tradições. Em dado momento, Panahi pergunta sobre os ursos, ao ouvir um boato de que os animais vagam pela aldeia, sendo muito perigoso sair à noite. Então, um conhecido dele responde: “Mas não há ursos. Absurdo! Histórias inventadas para nos assustar! Nosso medo capacita os outros. Nada de ursos!”

O medo por nossa própria segurança geralmente nos impede de defender muitos outros. Panahi tenta fazer o bem maior para essas duas mulheres, mas no final das contas não há muito que um homem possa fazer, e não sem grande risco para si mesmo. Séculos de mulheres sendo tratadas como propriedade e não sendo ouvidas o tornaram impotente nessas situações, por mais que ele tente fazer o melhor por elas. Seus destinos estão atados em tragédia, e Panahi fica à margem como sua testemunha. Mas uma testemunha sempre positiva. E operante.

Entre várias, a mais recente prisão de Panahi, 62 anos, foi em 11 de julho de 2022. Ele deveria cumprir pena de seis anos, anunciada em 2010, quando foi condenado por fazer “propaganda contra o sistema”, mas sua detenção mais uma vez se tornou um símbolo da repressão aos artistas que criticam o poder no Irã. Panahi, cujos filmes ganharam prêmios em vários festivais de cinema pelo mundo, foi libertado "dois dias depois de iniciar uma greve de fome", segundo a ONG Centro para os Direitos Humanos no Irã, com sede em Nova York. “Sem Ursos”, realizado na clandestinidade, é estreia do Cine Ouro Verde na próxima segunda feira (12).

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