O cineasta russo Alexander Sokurov tem uma relação de amor & ódio com ditadores. Eles foram tema de uma trilogia de cinebiografias do diretor : com o demônio cabalístico “Moloch” (1998) enfrentando Hitler; “Taurus” (2001), retratando os últimos dias de Lênin; e “The Sun/O Sol” (2005), analisando o declínio do imperador Hirohito, todos exibidos em Londrina no Cine Com-Tour/UEL. Em seu filme mais recente “Fairytale/Conto de Fadas”, Sokurov apresenta uma verdadeira coleção de tiranos – Hitler, Stalin e Mussolini interagem literalmente por um purgatório de fantasmagóricas imagens de arquivo.

Winston Churchill também está por ali, e se isto é culpa por associação (“éramos maus aliados”, diz ele sobre sua aliança com Stalin) ou simplesmente por ser ele próprio uma espécie da tirano (particularmente no contexto do Império Britânico), isto fica em aberto. Napoleão também vagueia pelas brumas, elogiando cortes de cabelo e distribuindo granadas, Jesus Cristo também aparece, aparentemente relutante em retornar ao céu e ao pai que o enviou para a cruz.

A partir do uso mais sofisticado da IA via deepfake, os espectros de Hitler, Stalin e Mussolini ganham presença histórica, as intrigas são expostas mas não explicadas e suas premissas ideológicas são lembradas numa paisagem irreal e dantesca, sobre as ruínas da velha Europa. O “conto de fadas”, título obviamente enganador, até por grosseira ironia, é na verdade uma situação reinventada em que quatro homens, figuras históricas de lados opostos na Segunda Guerra Mundial, tentam passar pela Porta de Deus. Dois dos quatro homens estavam no lado vencedor e dois no lado perdedor durante a guerra. Três eram ditadores que abraçaram totalmente o socialismo, ou pelo menos flertaram com ele na sua juventude, enquanto o quarto é nominalmente um democrata, mas na verdade é um imperialista e tradicionalista. Estas pessoas são Adolf Hitler, Benito Mussolini, Yosef Vissarionovich Jugashvili – mais conhecido como Stalin – e Sir Winston Leonard Spencer Churchill, enquanto o “guardião” não é outro senão o próprio Napoleão Bonaparte.

A SOMBRA DE LENIN

Deus ouve a todos, a sombra de Vladimir Ilyich Ulyanov Lenin paira sobre pelo menos dois deles que foram mais longe nas suas ligações com as ideias do socialismo (as brincadeiras entre Stalin e Mussolini são preciosas), Churchill quer receber instruções da Rainha, enquanto Hitler compartilha e desenvolve suas paranóias. Nenhum dos quatro pode abrir o portão devido aos seus vários pecados, desde o desejo de poder absoluto até o antissemitismo aberto, o amor próprio desenfreado, o imperialismo ou simplesmente curvar-se a uma autoridade superior que não seja Deus, mas isso não os impedirá de seguir tentando. Talvez a chave seja dada na citação bíblica logo na abertura do filme: “Você estrangulou Satanás, portador da paixão, com as cordas piedosas do seu sofrimento”. Mas será que algum dos que causaram o sofrimento realmente sofreu? E isso os impediria de competir entre si por diversas causas?

Os espectros de Hitler, Stalin, Mussolini e outros ganham presença histórica, as intrigas são expostas e suas premissas ideológicas são lembradas
Os espectros de Hitler, Stalin, Mussolini e outros ganham presença histórica, as intrigas são expostas e suas premissas ideológicas são lembradas | Foto: Divulgação

O conto de fadas nunca poupa a grandeza e o status mítico dos protagonistas históricos, sejam eles reverenciados ou condenados, retratando-os tão infelizes quanto qualquer outra pessoa. Em última análise, o filme de Sokurov é tão desconcertante quanto um pesadelo. É mais uma situação pensada com riqueza visual expressionista do que propriamente uma história (teria faltado Nosferatu ?) e às vezes, mesmo em seus 78 minutos ele parece um pouquinho longo. Se existe uma punição para os ditadores – por mais insuficiente que pareça, especialmente tendo em conta que as suas vítimas aparecem como meros borrões – é que eles estão condenados a repetir as suas ações e nunca escapar às suas patologias. No cinema, pelo menos, este é o seu destino: eles nunca acordarão do pesadelo da História.

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