Vez ou outra vem à cabeça uma música, que passo o dia cantarolando mentalmente. Esperando conserto de pneu na borracharia, cantarolei pra mim mesmo o samba de Ataulfo Alves que fez sucesso quando eu era menino: “Ô, mulata assanhada, que passa com graça / fazendo pirraça, fingindo inocente / tirando o sossego da gente”...

Uma mulher também esperava seu pneu e comentou: - Ô, música racista, hem.

Falei que não, ao contrário, é um samba exaltando a mulata: “Ô mulata, se eu pudesse / e se meu dinheiro desse / eu te dava sem pensar / esta terra, esse céu, esse mar / e ela finge que não sabe / que tem feitiço no olhar”...

- Mas – ela refutou – a pessoa é chamada de mulata, não é racismo?

Perguntei o que seria melhor: mestiça, parda? Talvez “ô, pardinha assanhada”...

Ela encarou:

- O senhor desculpe, mas desde menina eu conheço essa música, e sei que pede até a volta da escravidão!

Não, refutei eu, é uma brincadeira do sambista propondo-se a casar com a mulata e até fazendo trocadilho com pretoria: “Ai, meu Deus, que bom seria / se voltasse a escravidão / eu pegava essa mulata / e prendia no meu coração / e depois a pretoria / é quem resolvia a questão”.

Ela suspirou, pensou e objetou:

- Ele não fala em casar, só em “prender no coração”, decerto em regime de concubinato, né...

Argumentei que, se ela usava linguagem jurídica, sabia que as pretorias são especializadas em casamentos... Ela porém suspirou e sibilou:

- Mas a mulata como sempre é mostrada só como corpo, como objeto sexual.

Refutei novamente: que a mulata do samba “finge que não sabe / que tem feitiço no olhar”, indicando um relacionamento não apenas corporal.

- Mas – ela lembrou – a música se chama Mulata Assanhada, o racismo mental sempre colando etiquetas nos não-brancos: indolentes, vagabundos, assanhados...

Ah, concordei, melhor seria um samba sério, talvez uma marcha-rancho bem lenta, pra falar com todo respeito de uma bonita pessoa afro-descendente...

O borracheiro avisou que o pneu dela estava pronto, aí falei que, rapagão ainda, vi Ataulfo Alves saindo primeiro de um ônibus, para dar a mão a cada uma de várias senhoras a descer para o chão, era um cavalheiro, não ia cometer um samba depreciador de sua própria mesticice.

Ela fez cara incrédula, contei que foi fato sim, em Marília, eu estava sentado diante do hotel onde morava estudando fora de casa, vi parar um ônibus e o primeiro a descer foi aquele senhor mestiço de paletó e gravata, que deu a mão a cada uma de várias senhoras elegantes que desceram a seguir. Intrigado com tais figuras, perguntei quem eram, fiquei sabendo que eram Ataulfo Alves e suas pastoras, cantoras da orquestra que ia fazer passagem de som ali no Yara Clube, onde iriam tocar em baile à noite.

Um cavalheiro, repeti. Ela pagou o pneu e, antes de entrar no carro, estendeu a mão: - O senhor tem razão, vivam as mulatas.

- E os sambas! – completei lhe apertando a mão, e ela se foi ainda me dando um sorriso bom, como aqueles das mulatas de Ataulfo.

* A opinião do colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.