Quem acompanhou a cerimônia de posse do presidente Lula, sabe que sua mulher, Janja Silva, quebrou a tradição de usar vestidos, preferindo um terninho à brasileira.

Feito pela estilista gaúcha Helô Rocha, com detalhes das bordadeiras de Timbaúba dos Batistas, cidade do Rio Grande do Norte, o terno de alfaitaria logo foi batizado de "roupa da lacração", no lugar da "roupa da tradição" que seria um vestido, como os usados por dezenas de primeiras-damas antes dela.

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O terninho de crepe de seda acompanhado de colete trazia a feminilidade, num modelo tradicionalmente masculino, pelos bordados florais feitos com palha e capim dourado. O reforço da brasilidade veio pelo tecido tingido naturalmente com caju e ruibarbo. O caju já era usado como alimento de populações nativas muito antes da chegada dos portugueses; já o ruibarbo, é planta comestível e medicinal, ambos foram responsáveis por dar à roupa aquela coloração champanhe.

Janja, na posse de Lula, com o terninho de crepe de seda bordado com palha de junco e capim dourado: trabalho das artesãs do Rio Grande do Norte
Janja, na posse de Lula, com o terninho de crepe de seda bordado com palha de junco e capim dourado: trabalho das artesãs do Rio Grande do Norte | Foto: Evaristo Sá/ AFP

A roupa de Janja arrancou elogios e críticas. Antonia Fonetenelle tratou logo de tachar a escolha: “Aquilo ali, minha gente, é roupa da velha-guarda da Imperatriz Leopoldinense, porque é uma escola neutra, água de salsicha, nem cai e nem sobe”, disparou a youtuber que é amiga pessoal de Jair Bolsonaro..

Fontenelle foi seriamente repreendida na internet - com comentários que identificaram seus "ressentimentos" - além de levar um sabão da escola do Grupo Especial do Rio de Janeiro que emitiu uma nota pedindo seu "descredenciamento para qualquer finalidade ou função nos desfiles das escolas de samba." A agremiação também enviou convite à primeira-dama para que ela participe do desfile da escola em 2023.

Há um certo consenso de que a deselegância está mais nas palavras da youtuber do que na roupa de Janja.

Para vários estilistas, a roupa usada na posse, além de bonita, é coerente com seu discurso em favor da igualdade feminina e dos valores nacionais. Como ela declarou à Vogue: "Queria vestir algo que tivesse simbolismo para o Brasil, para os estilistas, para as cooperativas e para as mulheres brasileiras."

Não é a primeira vez que ela leva na roupa a marca das artesãs do Rio Grande do Norte. A mesma cooperativa de mulheres foi responsável pelos bordados de seu vestido de noiva que trazia "o luar do sertão", com um céu estrelado e as fases da Lua, além da flora, com os cactos, e a fauna do nordeste, tudo em minúsculos arabescos cheios de identidade.

Lu Alkimin, mulher do vice-presidente José Geraldo Alkimin, também ganhou elogios pelo vestido midi, branco, da estilista mineira Glória Coelho. As duas escolheram cores que remetem à harmonia.

DA RENDA DE BILRO AO RICHELIEU

Quem conhece o nordeste sabe do valor dos bordados feitos por artesãs que encantam os turistas. Também são famosas as rendas nordestinas que inspiraram a música "Mulher Rendeira", do repertório do xaxado, de autoria do Padre Frederico Bezerra Maciel, um regionalista pernambucano, em sua versão mais conhecida.

As rendas também causam admiração porque, em algumas localidades, elas são feitas com os fios tecidos a partir dos espinhos do mandacaru, um tipo de cactos, em vez de alfinetes. Vi pessoalmente este trabalho no Ceará.

Os trabalhos delicados têm origem nos bordados trazidos pela colonização portuguesa, além de outros representantes da cultura europeia, especialmente as freiras que vinham ao Brasil para fazer um trabalho religioso, mas traziam muito mais. Da renda de bilro, inspirada pelos bordadeiras portuguesas e açorianas, à renda Renascença, criada em Veneza (Itália), passando pelo bordado Richelieu e o de filé (filet em francês), a tradição vem de longa data e ganha nas mãos das brasileiras um toque original ao reproduzir, por exemplo, a flora nacional, em roupas que vão de vestidos de noiva a enxovais de bebês.

NEM ROSA NEM AZUL

Na cerimônia da posse, Janja ainda usou no jantar, no Itamaraty, um vestido azul-lavanda, da grife brasileira Neriage, novamente com a estilista Helô Rocha. Há quem classifique a cor do vestido a partir de outro simbolismo: nem rosa ( como manda a tradição da cor das "meninas") nem azul (cor dos "meninos"), mas um tom que combina as duas cores, dando margem a uma mistura que chega quase ao lilás. Não se sabe até que ponto a escolha quer dizer tudo isso, mas é o que se lê por aí na interpretação de quem aposta nas transformações a partir da moda e do comportamento.

Janja com o vestido lilás que usou no jantar do Itamaraty: nem rosa nem azul
Janja com o vestido lilás que usou no jantar do Itamaraty: nem rosa nem azul | Foto: Evaristo Sá - AFP

Interpretações à parte, o fato é que Janja dispensou o vermelho no figurino, considerado símbolo do PT, e usou a cor somente nas sandáias que calçou para o jantar, com um detalhe: na sola havia uma estrela também vermelha, simbolizando o partido de Lula.

MULHERES DA CENA POLÍTICA QUE APOSTAM NA IDENTIDADE

Janja não é primeira mulher representativa da cena política a investir em elementos brasileiros nos seus figurinos. Ruth Cardoso, socióloga como a atual primeira-dama, foi casada com Fernando Henrique Cardoso, ela usava colares, anéis e pulseiras com pedras brasileiras. Ametistas, safiras, topázios, turmalinas, entre outras consideradas semi-preciosas, eram usadas por ela para valorizar a identidade do país. Na época, isso chegou a ser uma tendência entre as intelectuais.

A ministra do Meio Ambiente Marina Silva, recém-empossada para mais uma gestão, também usa colares e pulseiras feitas com fibras e sementes - muitas das peças são criadas por ela mesma - bem como vestidos que trazem cores e estampas que remetem à Amazônia, sua região de origem, já que nasceu no Acre.

Lideranças femininas atuam também na cultura, na moda e no comportamento para que mais mulheres se identifiquem com a brasilidade. Hoje, em programas fashionistas, há uma gama de roupas e acessórios "made in Brazil" que levam esta tendência para o mundo. Há também mulheres indígenas que fazem moda como We'e'ena Tikuna (@weena_tikuna), sem contar os designers que valorizam o belíssimo grafismo das tribos - às vezes imitados pelo mundo afora - e equipes de fotógrafos, stylists e maquiadores indígenas que promovem eventos.

A nova ordem é valorizar o que temos de melhor e parece que a primeira-dama - que não gosta de ser chamada de primeira-dama, por considerar a expressão "muito patriarcal" - sabe disso. Janja está à procura de uma nova denominação para sua função ao lado do marido presidente. Quem tiver sugestões que as envie.

Quem sabe acertem no alvo do que deseja essa mulher, considerada uma das mais representativas do atual cenário político brasileiro, que nasceu aqui mesmo, no Paraná, levando para o Brasil o nome de sua cidade natal: União da Vitória, o que não deixa de ser significativo.

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