Promover uma interação constante até que o espectador se torne a continuidade da obra de arte. Seguindo esse conceito, a artista plástica mineira Lygia Clark (1920-1988) revolucionou o cenário artístico nacional e tornou-se uma das fundadoras da arte contemporânea brasileira. O trabalho da artista que completaria 100 anos de nascimento em 2020 continua provocando reflexões três décadas após sua morte por pioneiramente ter rompido os limites entre manifestações artísticas, psicológicas e filosóficas.

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. | Foto: Folhapress

Nascida em Belo Horizonte, Lygia Clark iniciou a carreira artística no Rio de Janeiro para onde seu mudou após depois de casada. Já com três filhos e com quase 30 anos de idade, ela produziu suas primeiras pinturas em 1947, sob a orientação do artista plástico e paisagista Roberto Burle Marx.

Em 1950, partiu para uma temporada de estudos em Paris e tornou-se aluna do pintor cubista Fernand Léger, do pintor e gravurista Arpad Szenes e do escultor e pintor Isaac Dobrinsk. Em seu retorno ao Rio de Janeiro, promoveu a sua primeira exposição individual. Reconhecida como artista emergente, foi convidada para participar da Bienal de São Paulo em 1953.

Um dos trabalhos mais relevantes assinados por ela neste período foi a obra “Quebra da Moldura”, produzida em 1954. Nela, a artista subverte a moldura como figura central da composição enquanto sua pintura rompe os limites do espaço até então delimitado. No final da década de 1950 e início dos anos 1960, integrou-se ao Grupo Frente, que reuniu artistas neoconcretos como Hélio Oiticica e Lígia Pape. O objetivo do coletivo era romper com o conceito extremamente racional do concretismo produzindo abstrações geométricas que buscavam aproximar o espectador da obra através da subjetividade.

Para muitos críticos, a série “Bichos”, produzida entre 1960 e 1964 é a perfeita tradução da arte plurissensorial e atemporal produzida pela artista. O trabalho é formado por placas de metais unidas com dobradiças que ao serem manipuladas pelo público permitem a criação de novas formas, como se fosse um organismo vivo. “Com os Bichos, a meu ver, ela encerra uma série de obras ligadas à forma e investiga, de maneira mais radical, a sua inquietação que visava a algo inesperado até mesmo por ela”, afirma Claudio Garcia, docente do curso de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Escultura da série 'Bichos”: com dobradiças, elas podiam ser manipuladas e transformadasdando a ideia de uma “obra viva”
Escultura da série 'Bichos”: com dobradiças, elas podiam ser manipuladas e transformadasdando a ideia de uma “obra viva” | Foto: Moacyr Lopes Junior/ Folhapress

ARTE-TERAPIA

Nos anos 1970, Lygia lecionou na Faculdade de Artes Plásticas de Sorbonne, na França, onde iniciou a transição da arte para a terapia em experimentos produzidos com seus alunos. Nesta fase, criou a obra “Em Túnel”, na qual as pessoas percorrem um tubo de pano de 50 metros de comprimento, vivenciando sensações de claustrofobia e sufocamento que contrapõem-se a do nascimento, por meio de aberturas no pano. Já a obra “Canibalismo”, de 1973 faz alusão a rituais arcaicos no qual o corpo de uma pessoa deitada é coberto de frutas que são devoradas por outras de olhos vendados.

De volta ao Brasil, em 1976, a artista passou a se dedicar totalmente à prática terapêutica. Criou os “Objetos Relacionais”, com os quais os pacientes criavam relações com os objetos por meio de sua textura, peso, tamanho, temperatura, sonoridade ou movimento. O objetivo era promover o resgate de sensações registradas na memória do corpo relativas a fases da vida anteriores à aquisição da linguagem.

RELEVÂNCIA HISTÓRICA

A obra de Lygia Clark tem uma importância histórica no cenário da arte nacional, conforme aponta Claudio Garcia: “Dentro do contexto brasileiro, essa importância histórica é mais pontual e, sem dúvida, muito grande. Sobretudo no Movimento Neoconcreto, tão conceituado por vários críticos de artes e muito bem situado historicamente na cultura brasileira”, destaca.

Na avaliação dele, as obras de Lygia têm um viés mais artístico que terapêutico. “Vejo essas proposições como blocos de sensações e percepções que atingem o espectador participativo que, quando se envolve mediado pela própria fruição, pode iniciar um processo de criação artística visando às pesquisas voltadas para a educação, para a psicoterapia ou para outros campos do conhecimento”, conclui.

Vítima de infarto, Lygia Clark morreu aos 67 anos, no Rio de Janeiro,deixando o rastro de uma criatividade surpreendente que supera a ideia de representação e de suportes na arte . Sobretudo, a artista tira o espectador da postura alienada em relação ao objeto artístico, passando a compartilhar da sua criação. Essa interação sacode completamente a ideia de um espectador passivo que passa a ser atuante em relação a uma obra viva.