As centenas de pessoas que foram assistir "Desfazenda - me enterrem fora desse lugar", apresentado no FILO 2023, tiveram um momento inusitado e emocionado ao final do espetáculo que terminou junto a uma árvore, fora do Teatro Ouro Verde, no Calçadão de Londrina. A última sessão do espetáculo, que estreou na sexta-feira, foi neste sábado (24).

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A palavra é o espetáculo em "Desfazenda"

Foi embaixo de uma árvore, na praça em frente ao teatro, que as vítimas do racismo no Brasil foram homenageadas a partir da história de um dos personagens da peça que trata do sequestro e escravidão de 50 crianças negras de um orfanato do Rio de Janeiro para serem submetidas a trabalhos forçados numa fazenda de São Paulo.

"Desfazenda" é a antítese das fazendas de triste memória, uma metáfora de como a arte pode ressignificar as coisas, curando feridas.

Num clima de medo e suspense, o espetáculo trespassa não apenas este fato histórico, ocorrido na fazenda de oligarcas da elite paulista que colaboravam com a extrema direita, através da Ação Integralista Brasileira, de ideário fascista. O tema foi abordado pelo pesquisador Sidney Aguilar Filho em sua tese de doutorado “Educação, autoritarismo e eugenia - exploração do trabalho e violência à infância desamparada no Brasil (1930-1945)”.

A pesquisa deu origem ao documentário Menino 23 - Infâncias Perdidas do Brasil, de Belisario Franca ( disponível no Globoplay), depois adaptado para o teatro por Lucas Moura para o espetáculo dirigido por Roberta Estrela D'Alva, com direção musical da DJ Dani Nega e encenado pelos atores do grupo O Bonde: Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves.

A linguagem é a do teatro-hip hop.

A história de racismo e escravidão encontra eco na contemporaneidade com a juventude negra sendo perseguida e maltratada nas periferias do Brasil, onde centenas de pessoas são mortas a cada ano, como mostram as estatísticas.

Ainda há muito a fazer para estancar o sangue e curar essa ferida que atravessa a história e ecoa cotidianamente. Mas, certamente, caminhos vão sendo trilhados e o teatro é a linguagem capaz de passar a limpo uma história de eugenia e dor coletiva.

Grupo O Bonde tira o público do teatro e termina o espetáculo embaixo de árvore, na praça em frente ao Ouro Verde
Grupo O Bonde tira o público do teatro e termina o espetáculo embaixo de árvore, na praça em frente ao Ouro Verde | Foto: Célia Musilli - grupo Folha

"Me enterrem fora desse lugar" é a frase que sintetiza o desejo de um dos personagens que não quer ser enterrado na fazenda onde viveu oprimido e onde tantos sofreram.

Simbolicamente, nesta noite, e em outras tantas, ele foi enterrado embaixo de uma árvore, fora da fazenda imaginária que só o teatro pode trazer de volta com um apelo às consciências. O que vai ao encontro de uma frase emblemática da peça: o medo não termina só com a coragem, mas com o movimento.

Foi emocionante ver o público se movimentando num cortejo atrás dos atores que carregaram oferendas até a árvore, ao toque do agogô, no ritmo solene das entregas no candomblé.