A mineira Morena Nascimento é a coreógrafa convidada para montar o próximo espetáculo do Ballet de Londrina, ainda sem título. A montagem que estreia em 11 de outubro, às 20 horas, no Teatro Ouro Verde, será a primeira experiência da companhia londrinense tendo uma mulher à frente da coreografia. “É uma honra para mim! Mas acho que demorou. Mas apesar de termos no Brasil mulheres talentosíssimas, a maioria das companhias ainda é coreografada por homens. Que venham outras mulheres”, afirma. Morena, que desde o útero de sua mãe, também bailarina, está no mundo da dança, participou de várias companhias brasileiras e fez parte da companhia alemã TanzTheater Wuppertal, de icônica coreógrafa Pina Bausch.

Leia a seguir a entrevista que a FOLHA fez com Morena.

Como você chegou ao mundo da dança?

Digo que tenho uma relação umbilical com a dança, pois minha mãe já dançava quando estava grávida de mim. E ela se separou de meu pai biológico bem cedo, e logo se casou com meu padrasto, a quem chamo de pai, que tinha acabado de voltar de Nova York (EUA), onde também dançava. A gente morava em Belo Horizonte, e os dois se conheceram. Ele foi para Minas dar aulas de balé, a convite de vários grupos, como o Camaleão, o Primeiro Ato, o Meia Ponta. E minha mãe integrava o grupo Corpo, que ainda estava no início. Mas logo em seguida nos mudamos para Campinas (SP), pois meu padrasto foi convidado para ser professor na Unicamp, e dirigir o Departamento de Dança da universidade. Cresci nesse universo da dança, vivia nas salas de ensaio. Aos 11 anos eu falei para minha mãe que queria fazer aula de dança. E não parei mais.

Como foi sua formação acadêmica?

Eu fiz duas graduações em Dança. Uma na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e, mais tarde, outra na Folkwang Hochschule, na Alemanha. Aos 17 anos prestei vestibular para o curso de Dança da Unicamp e passei. Ali tive grandes mestres, como Holly Cavrell, que havia dançado com Martha Graham, que foi muito emblemática na minha história e no meu entendimento da dança moderna. Tive aulas com Angela Nolf, uma professora maravilhosa, que ensinava um balé mais humanizado, dentro do contexto de se respeitar o corpo de cada um. Foi aí também que tive aulas de danças brasileiras com Inaicyra Falcão, Graziela Rodrigues e Euzébio Lobo, que é meu padrasto, que dava aulas de composição coreográfica utilizando elementos da capoeira. Então, na Unicamp, foi um banquete de possibilidades com a dança, com professores com formações distintas, vindos de várias partes do mundo.

Durante a universidade você já conseguia se apresentar como bailarina?

Sim, ainda na primeira graduação comecei a participar de grupos de criação e também integrei o grupo da professora Holly Cavrell, que ela mantém até hoje, o Cia Domínio Público, e também dancei no grupo do Kleber Damaso, que era meu veterano na universidade, e desde o primeiro ano da faculdade se mostrou um grande coreógrafo. Além de dançar, também comecei a experimentar meus primeiros trabalhos de criação e composição coreográfica. Tanto que meu TCC foi um espetáculo com quatro interprestes coreografados por mim. Aí eu não queria mais sair daquele lugar da criação de coreografias.

Mas você foi para palco, como foi essa decisão entre ser coreógrafa ou bailarina?

Eu fiquei super dividida entre ser intérprete em uma companhia de dança ou seguir o trabalho como coreógrafa. Na verdade eu me via na duas situações e ainda hoje me vejo assim e continuo oscilando positivamente entre uma coisa e outra. Gosto de ser intérprete, ser dirigida por alguém, mas também gosto de estar na liderança dos meus trabalho, em diálogo com outros artistas. Mas naquele momento, eu segui minha intuição e fui dançar na Cia. Primeiro Ato. Foi minha primeira experiência profissional como bailarina, dançando em vários palcos do Brasil, inclusive aqui em Londrina, no festival, e também na Espanha. E ainda me vejo muito encaixada também nesse lugar de bailarina, embora nos últimos anos eu esteja mais coreógrafa e professora de dança. Acho que também o fato de ter tido minha filha, a maternidade me colocou em um outro lugar. E também logo depois veio a pandemia, que nos colocou num lugar de recolhimento, e aí surgiram muitos convites para eu coreografar grandes companhias do Brasil e na Alemanha, dirigir, dar aulas, residências artísticas. Isso me realiza muito como artista também.

Morena Nascimento na apresentação de um trabalho autoral; no Ballet de Londrina, ela cria uma coreografia com músicas de Gal Costa
Morena Nascimento na apresentação de um trabalho autoral; no Ballet de Londrina, ela cria uma coreografia com músicas de Gal Costa | Foto: Divulgação

Por falar em Alemanha, você fez parte da companhia de um dos ícones da dança mundial, Pina Bausch. Como foi essa experiência?

Primeiramente, sinto que a Pina surgiu dentro de mim. Isso aconteceu quando, ainda na Unicamp, me deparei com o trabalho dela em uma fita de VHS, que encontrei na videoteca da faculdade. Eram trechos do espetáculo “Café Müller”, um balé muito emblemático da Pina. Aquilo me deixou completamente perturbada e nunca mais me deixou. Com o amadurecimento, me senti preparada para cruzar o Atlântico, movida pela paixão pelo trabalho de Pina. Mas meu caminho até ela não foi direto pela sua companhia de dança. Eu entrei primeiro na Folkwang Hochschule para minha segunda graduação. Pois foi nessa escola que Pina havia estudado, dirigido, e muito de seus ex-bailarinos são professores lá. Então ali a gente sente o perfume dessa linguagem pinabauschiana. Foi muito importante chegar perto disso antes de ir para a companhia dela.

Como você chegou até ela?

Foi durante uma mostra de trabalhos na escola, quando eu apresentei um solo, e os meus professores convidaram a Pina Bausch para me ver. Penso que eles perceberam que eu tinha alguma coisa a ver com o trabalho dela. Duas semanas depois fui convidada para dançar na companhia TanzTheater Wuppertal, de Pina Bausch. Logo que entrei, começamos a criação de uma nova peça. Estreamos e logo depois ela morreu. Fiquei mais um ano na companhia e resolvi sair, pois, para mim, não fazia mais sentido ficar lá sem o olhar dela. Me senti um pouco órfã, pois estava no grupo só há dois anos. E também tinha o desejo de voltar para o Brasil e desenvolver meu trabalho autoral. Mas a companhia quis que eu continuasse como bailarina convidada, então entre 2010 e 2019 eu voltei para dançar com eles. Mas ainda mantenho o laço com a Alemanha, onde atuo como coreógrafa e professora na escola onde fiz minha segunda graduação.

Você também participou do documentário sobre Pina Bausch, do diretor alemão Wim Wenders, como foi essa experiência?

Foi incrível! Uma grande produção com a companhia da Pina, da qual eu já havia pedido demissão, mas eu participei das filmagens. Mas ao mesmo tempo foi um período em que a companhia estava vivendo um luto, pois o documentário começo a ser rodado logo após a morte da Pina. Inicialmente, a ideia dele era filmar três coreografias (Sagração da Primavera, Lua Cheia e Café Müller) da Pina, em 3D. Mas ela morreu, e o Wim Wenders transformou o trabalho em uma grande homenagem.

Como foi esse convite para trabalhar com o Ballet de Londrina e como está sendo essa experiência?

A gente já estava conversando há uns dois, três anos, e agora, finalmente, consegui. Estou muito feliz em coreografar o grupo, com um elenco aberto e disponível para minhas ideias, proposições. E tenho muita segurança de que a gente está criando algo muito bonito entre nós, e que faz sentido para eles. Para mim, me interessa muito, como coreógrafa, que os bailarinos se sintam donos do que estão dançando e contemplados enquanto artistas. Claro que tenho algumas ideias já prévias. Eu cheguei querendo coreografar as músicas cantadas por Gal Costa, e percebo como essas músicas afetam os bailarinos, e como eles respondem a isso são pistas fundamentais para a minha criação.

E por que Gal Costa?

Acho que a Gal é uma grande provocação para todos nós, nesse sentido de resgatar esse lugar genuíno de cada um, nessa expressividade liberta, pois ela representa a liberdade total, o corpo livre em movimento, a sensualidade, o erotismo que ela traz e a força política também. Eu já havia coreografado o Balé da Cidade com músicas de Caetano Veloso, e fiquei muito encantada com a possibilidade de coreografar com música brasileira. Sinto falta desse diálogo entre a dança contemporânea e a música brasileira, que é uma grande força expressiva do nosso País.

Como você está vendo o fato de ser a primeira mulher a coreografar o Ballet de Londrina?

Estou extremamente honrada por isso. Acho que demorou para uma mulher vir. Uma companhia que existe desde os anos 1990... Mas ainda a gente vê que a maioria dos trabalhos de dança no Brasil são coreografados por homens, e no entanto temos muitas mulheres talentosíssimas no Brasil. Espero que outras também venham trabalhar com o Ballet de Londrina, e eu também quero voltar.