Um transe de Natal
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terça-feira, 22 de dezembro de 2020
Adriano Garib/ Especial para a Folha
Estava sozinho, quarentenado, numa abafada noite de Natal. Decidira não procurar os amigos, pois a maioria mostrou-se um tanto avessa a encontros presenciais. E como nenhum propôs um evento on-line, restou ao nosso herói ficar quietinho em casa, na companhia de um peru assado, algumas frutas, um frisante gelado e a tv ligada. Negou-se a vadiar na internet. Sabia que isso o deprimiria.
E de repente, quase como um insulto, toca seu telefone. Não o celular, que desligara pra não ser procurado, mas o fixo, que ficava num canto obscuro de seu escritório. Atendeu com um esgar de perplexidade e má vontade.
- Alô.
- Oi. Eu sou o espírito do Natal 2020.
- Espírito de porco?
- Quê?
- Nada.
- Estou ligando pra saber o que o senhor aprendeu esse ano.
- Não aprendi nada. Só sofri e reclamei.
- Jura?
- Por Deus.
- Mas sofrer e reclamar te ensinou alguma coisa?
- Acho que sim.
- Tipo o quê?
- Me ensinou a sofrer e a reclamar sem fazer escarcéu e sem encher o saco dos outros.
- Olha aí que beleza. Já não é alguma coisa?
- Me diz você, que sabe tudo.
- Eu não sei tudo.
- O que quer comigo?
- Te fazer companhia.
- Não quero sua companhia.
- Tem certeza?
- Não tenho mais certeza. Essa foi outra coisa que esse ano me ensinou.
- Olha aí que beleza. Te ensinou a não ter certeza?
- Com certeza.
- E suponho que o senhor já tenha entendido o que aconteceu, não?
- Não, não entendi. Tou atrasado nessa parte.
- Qual parte o senhor não entendeu?
- A parte principal.
- Que seria?
- A causa.
- As causas são misteriosas. Nesse caso, é mais prudente deter-se sobre as consequências. E providências. E prevenções.
- Mas se nos for dado conhecer as causas, saberemos contornar o problema, não?
- Será? Saber por que vem o tsunami lhes dá o poder de evitá-lo?
- De evitá-lo não, mas de enfrentá-lo talvez.
- Talvez.
- Então, aí vai meu pedido.
- Sou todo ouvido.
- Que a gente aprenda, enfim: a prevenção é a melhor cura.
- Mas como se prevenir de algo que não sabes exatamente o que é?
- Pois é, ficar imaginando ameaças faz mal pra saúde.
- Mas precaver-se de males inevitáveis é o mel da sapiência.
- E da ciência.
- Assim, ao espírito do Natal só resta desejar ao senhor, a todos, a melhor saúde possível.
- Saúde! Só isso?
- Acha pouco?
- Acho muito. Mas e quanto ao resto?
- O resto é muita coisa. Posso tentar resumir?
- Tou aqui pra ouvir.
- Saúde pública é assunto sério demais. Aprender a parar e reciclar é tão importante quanto trabalhar. Não somos super incríveis, somos falíveis. Valorizar família e amigos é imprescindível. Solidariedade é um fundamento que nos define como seres civilizados. A natureza precisa de um descanso eventualmente, assim como nós. Precauções simples evitam mortes. Ter vida é mais importante do que ter o resto. Feliz Natal, meu jovem!