Não sei quando, pois isso dependerá daquilo que a gente sabe que um dia vai acontecer mas ninguém espera.

Não sei onde, isso será escolha de quem plantar.

Sei que vou virar flor porque, depois de cremado, as cinzas serão misturadas com terra em vasos e floreiras.

Não desgosto da ideia de jogar as cinzas ao vento, embora isso já exija também escolher onde. A Rua Maranhão onde nasci? Ou ao léu por aí? Que bom seria se pudesse deixar as cinzas em lugares do passado, a primeira casa de que tenho lembrança, as casas da Nonna Paulina e da Vó Tiana, os colégios do jovem rebelde, a Ilha do Mehl do moço a se procurar, as cascatas do homem a se achar, a Rua Cangatara em São Paulo, a Chácara Chão em Londrina. Se tivesse de escolher um só desses lugares, me sentiria traindo a própria vida.

Tem quem queira as cinzas lançadas do alto de avião ou até do alto do Himalaia, mas eu preferiria ser despejado no riacho mais próximo. O fundo do vale porém está bem florestado, é difícil chegar ao riacho, as capivaras reinam ali e, decerto, estarei com minhas cinzas violando alguma lei ambiental.

Também seria difícil escolher rio, entre o Tibagizão de Jataizinho, que conheci menino trepado em caminhão de areia, e o Tibagi dos Campos Gerais onde acampei entre tantas estrelas. Não, nenhum rio me representa.

Jogar as cinzas no mar também não é má ideia, pois foi de lá que viemos e, afinal, somos tão feitos de água. Mas, por ser pé-vermelho, curtido em barro e poeirão, descarto também o mar.

De qualquer modo, fosse onde fosse eu estaria dando trabalho, talvez até motivando rituais com lágrimas e – livrai-me, Senhor! – discursos.

Mas para as cinzas virarem flor, só será preciso levar para casa. Ou para as casas, pois nada tenho a opor que não só a viúva como filhos e também netos partilhem desse, digamos, legado residual.

Assim, florirei em mais casas para mais gente (o que porém poderá ser visto como última artimanha do Ego... Falem porém o que quiserem, não estarei nem aí).

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. | Foto: Dalva Vidotte /Divulgação

Também escolham as flores que quiserem, das usuais rosas às rosas-do-deserto, florirei como quiserem.

- Mas – me fala um neto com a lógica impiedosa dos adolescentes – não é você que vai florir, vô, você vai só sustentar a planta da flor, não é?

Isso mesmo, concordei, estarei em cada flor como a chuva está no rio e o sangue está na gente.

As flores certamente gostarão, pois cinza é o mais antigo dos adubos; os romanos guardavam até por século, em ânforas lacradas, vinhos de uvas adubadas com cinza dos antepassados.

Portanto não quero voar ao vento, não quero sumir na água, muito menos ficar num pote de porcelana como sacrossanta relíquia.

Se meu plantio, digamos assim, for numa floreira, aí poderão plantar beijinhos e marias-sem-vergonha, tão florideiras, ou até cactos entre pedras e... epa, já estou querendo dirigir o futuro onde nem estarei presente!

Então enfim: não sei onde nem como, basta saber que vou virar flor.

Ecologicamente correto e, desde já, me sentindo feliz.