Como os leitores tomaram conhecimento pela grande imprensa, ficou explícito o mecanismo centralizador, autocrático, intimidatório e à margem da lei, posto em funcionamento pelo ministro Alexandre de Moraes no seio do TSE.

O jornalista Ranier Bragon, da Folha de São Paulo, intitula assim a situação: “Mensagens expõem Moraes investigador, acusador e julgador”, frisando que “o gabinete do ministro Alexandre de Moraes se valeu de mensagens privadas para simular a produção de relatórios que, mais tarde, seriam usados por ele mesmo para embasar ações contra expoentes do bolsonarismo golpista. Nos autos, o órgão de combate à desinformação levantava, de forma espontânea, supostas ameaças ao regime democrático e ao processo eleitoral e entregava o resultado em mãos do juiz para a sua decisão imparcial, como se imagina o Estado Democrático de Direito. Na prática, as supostas ameaças eram farejadas pelo próprio magistrado. Fora dos autos, ordenava secreta e informalmente a produção de relatórios. Horas depois, tomava, aí sim nos autos, as medidas restritivas baseadas nos mesmos relatórios que havia encomendado”.

A imprensa começou a falar em “esquizofrenia”, que eu denominaria de “tripla personalidade”, encarnada no augusto juiz: um personagem, privado, que xereta possíveis atentados à democracia, outro que, sobre essa intuição, manda elaborar um rascunho, também privado, de medida autocrática e um outro que assina como se fosse possuidor de poder para tanto. Tripla “esquizofrenia patrimonialista”! Numa das decisões, Moraes escreveu: “Trata-se de um ofício encaminhado pela Assessoria Especial de Desinformação, Núcleo de Inteligência do Tribunal Superior Eleitoral”.

Acho que o procedimento não tem nada de novo. Só que era praticado há mais de duzentos anos, na França do Absolutismo, nas famosas “Lettres de Caché” (“Cartas Ocultas”) dos poderosos que queriam exterminar, em segredo, algum desafeto, como quando o Primeiro Cônsul Napoleão Bonaparte (1769-1821) mandou fuzilar, nos porões do Palácio de Vincennes, em Paris, na alta madrugada, o seu arqui-inimigo Duque de Enghien (1772 –1804), que foi sequestrado na Alemanha pelo serviço secreto do futuro imperador e conduzido à sua prisão final, para ser acusado de atentado contra o novo regime inaugurado pela Constituição de 1799, que fortalecia o absolutismo revolucionário, tornando o Primeiro Cônsul, Bonaparte, o centro do poder.

Condenado à morte por uma sentença secreta, concluída às 4 horas da manhã da data da execução, o Duque de Enghien foi fuzilado meia hora depois. O diplomata francês Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord (1754-1838) fez um comentário que ficaria célebre: “Aquilo foi pior que um crime; foi um erro”. Ora, a frase de Talleyrand poder-se-ia aplicar, inteirinha, aos episódios esquizofrênicos do Xandão, que estão constituindo, hoje, o prato quente da índole autocrática do ministro: Um erro xandônico!

Porque as aventuras secretas do juiz ganharam as páginas dos jornais através dos mais de 6 gigabytes de mensagens e arquivos trocados via WhatsApp por auxiliares de Moraes, entre eles o seu principal assessor no STF que ocupa o posto de juiz instrutor, em que se baseiam as revelações feitas à imprensa pelos jornalistas Fabio Serapião e Glenn Greenwald na Folha de São Paulo, as quais, como frisa Bragon “mostram que se tratava de outra coisa. É como se Moraes escrevesse: baseado em evidências colhidas por mim mesmo, e por mim mesmo já recriminadas de imediato, decido. As mensagens de seus assessores no TSF (Supremo Tribunal Federal) e no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) escancaram o Moraes investigador, acusador e juiz ao mesmo tempo – figurino que representa evolução ao que já lhe era atribuído no inquérito das fake news (...). Uma coisa é inegável: os próprios autores do modelo sabiam que estavam sapateando sobre as regras. Fosse diferente, tudo seria feito às claras, como todas as coisas corretas são feitas”.

Os jornalistas Fabio Serapião e Glenn Greenwald concluem: “O gabinete de Alexandre de Moraes no STF ordenou, por mensagens e de forma não oficial, a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio ministro contra bolsonaristas no inquérito das fake news no Supremo Tribunal Federal, durante e após as eleições de 2022”. A pressa na construção da narrativa pseudojurídica ficou evidenciada nas palavras do juiz instrutor do STF, Airton Vieira, em mensagem para Eduardo Tagliaferro: “Não adianta, ele [Moraes] cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia”.

Tragédia para os súditos do Estado Patrimonial chefiado, na parte jurídica, pelo juiz Alexandre de Moraes, que torna atual a sentença do estudioso do Patrimonialismo, Max Weber (1864-1920), para quem o soberano faz questão de roubar, aos seus dominados, qualquer sentimento de dignidade!

Ricardo Vélez Rodríguez, professor de filosofia e ex-ministro da Educação

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