Acabou nosso Carnaval (II)
No poema “Quarta-Feira de Cinzas”, o retorno às verdades da fé é apresentado como única forma de sobrevivência ao caos do mundo moderno
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
No poema “Quarta-Feira de Cinzas”, o retorno às verdades da fé é apresentado como única forma de sobrevivência ao caos do mundo moderno
Homem dotado de uma poderosa imaginação moral, capaz de transformar em poesia de primeira qualidade as grandes inquietações de seu tempo, T. S. Eliot, o autor de “Quarta-Feira de Cinzas”, percebeu que o retorno às verdades da fé seria a única forma de sobreviver à realidade caótica do mundo moderno. Tal como veio a afirmar Eric Voegelin em outro contexto, Eliot, diante da confusão do mundo, opôs uma alma ordenada.
Para escândalo dos comunistas, ateus e desesperados de sua época, T. S. Eliot não apenas aderiu à fé cristã, como também permitiu que um de seus símbolos mais fortes — Maria, a Mãe de Deus — tivesse um espaço privilegiado em sua poesia. Como afirma Russell Kirk, biógrafo de Eliot, “Quarta-Feira de Cinzas” não é um poema dirigido à comunidade, mas à consciência humana. Após falar sobre os ferimentos do corpo e da alma causados pelo pecado — sendo as tentações da carne, do mundo e do demônio simbolizadas como três leopardos brancos —, o narrador do poema se define como um punhado de ossos e alma sobreviventes… e conscientes. E são justamente os ossos que entoam a seguinte oração:
Senhora dos silêncios
Serena e aflita
Lacerada e indivisa
Rosa da memória
(...)
A única Rosa em que
Consiste agora o jardim
Onde todo amor termina
(...)
Fim da infinita
Jornada sem termo
Conclusão de tudo
O que não finda
Fala sem palavra
E palavra sem fala
Louvemos a Mãe
Pelo Jardim
Onde todo amor termina.
Além de transformar em versos algumas passagens da liturgia católica — “Eu não sou digno, mas dizei uma palavra” — e da própria Ave-Maria — “Agora e na hora de nossa morte” —, Eliot utiliza sua genial capacidade de criar símbolos poéticos para criar o que eu chamaria de pequena catedral literária de nosso tempo. A grande catedral viria depois, com a publicação dos “Quatro Quartetos”, dos quais falaremos em outra oportunidade. Mais uma prova de que a Quarta-Feira de Cinzas, ao contrário do que dizia a canção de Vinicius de Moraes, não é o dia em que tudo acaba. É o dia em que tudo começa.
(Nota: Nas citações do poema, utilizei a tradução de Ivan Junqueira para o português.)